Ao som de Diana Krall, dedicado à senhora Guimarães Otis
– Por meados de outubro, de um ano não muito próximo, nem
muito distante, a vida estava difícil pra todos. Sustento, no interior da
Bahia, era artigo de luxo pra estudantes. Pode acreditar, camarada!
Sobrevivíamos em cinco, em uma república de quarto/sala /cozinha, com uma
hortinha que cultivávamos junto a um córrego que corria pertinho do nosso
quintal. O aluguel beirava duzentos reais. Pra pagá-lo, uns de nós vendíamos
ervas pra depressão, outros auxiliavam professores com assuntos sexuais não
resolvidos; eu, como era gordo, e não tinha ervas, trabalhava com jardinagem na
casa da senhora Tavares. – Pausa pro gole.
– A senhora Tavares era uma escritora frustrada, porém
amparada por uma pensão gorda que seu marido, que falecera com uma alta patente
militar, deixara. Nunca havia visto nada tão descomunal quanto esta mulher e a
vida que ela levara! Morava em um mausoléu antigo ornado, interior e
exteriormente, por plantas protuberantes e estranhas. Em seu quarto cultivava xaxins
com samambaias africanas em tons de verde e amarelo, orquídeas transparentes e
cactos, que, segundo ela, eram venenosos. Centralmente, em sua sala de
recepção, havia uma palmeira imperial que beirava uns três metros de altura.
Era tão grande que as folhas ficavam espremidas entre o teto e o caule da
planta. Ter uma palmeira de três metros dentro de paredes que mediam um pouco
mais parece insanidade, contudo, o que mais me assustava eram os bichos da
casa. Touché era uma tartaruga-cinzeiro. A velha fumava cerca de dois maços de
cigarro por dia, sempre estava com o fedorento artefato entre os dedos, e
quando avistava a pequena Touché, limpava o excesso de cinza da ponta do
cigarro sobre o casco do animal. Na verdade, sempre achei que aquilo era um cágado.
Lembro-me que uma vez que fui dizer isso a ela, e ela, com aquelas pelancas
faciais rabugentas, completou: “A merda do bicho é meu e eu chamo do jeito que
eu quiser!”. – Outro trago. O copo secou.
– Além da pseudotartaruga-talvezcácagado-cinzeiro, a velhota
tinha um gatinho com tetas gigantescas. Não sei o motivo, mas as tetas daquele
animal eram volumosas e monstruosas. Por parecer muito com tetas de vaca eu o
apelidei de Bichano-bovino-tetático. Ah, não posso esquecer-me da pior parte:
ela também tinha um cachorro. Só que o cachorro era normal. Perante a tanta
diversidade, pra não usar um termo mais escroto, o que motivava a velhaca a ter
um animal normal? Como esperado, o cachorro ficava esquecido, abandonado, acho
até que estava beirando a depressão. Com tantas atrações legais, o comum não
era bem-vindo! Os tempos eram outros. Dinheiro era artigo de luxo. E vivíamos
fábulas como se fossem reais. É, querido Bezerra, a vida nunca foi fácil para
os escritores!
– Eu que sei, querido... eu que sei! Kiko, traz outra! – disse
Bezerra, antes da conversa mudar de foco.
Os tempos eram outros. Dinheiro era artigo de luxo. E vivíamos fábulas como se fossem reais. Muito verdadeiro lindo eu era tão feliz. Saudades.
ResponderExcluirObrigado pela leitura NADJA!
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